terça-feira, março 16, 2010

"Si tengo las manos sucias, el viento las limpiará!"

                           Certas coisas a gente nunca esquece,mesmo que o tempo tente apagar.Eu tinha 8 anos quando morreu meio tio Toninho.
                            O mais novo dos seis irmãos de minha mãe era rebelde! eu cresci ouvindo histórias de como meus avós tentavam domar  tanta ânsia de ser livre, que o levava muitas vezes a cometer erros naquele tempo imperdoáveis, principalmente se praticados por pessoas de origem humilde, sem o que  minha mãe costumava chamar de "costas largas". Eu nunca entendi muito bem o  verdadeiro significado desta expressão,mas a julgar pelas situações em que se metia meu tio,acho que tinha a ver com não ter,por exemplo,"amigos" de influência forte para socorrê-lo nas horas ruins.
Há detalhes no rosto de meu tio que ainda hoje me vêm na lembrança, quando penso nele:os bigodes...eram enormes! os olhos azuis,num rosto inchado que sempre acusava o uso constante e exagerado de álcool, combinado com o cigarro de palha que ele sempre guardava atrás de uma das orelhas.Os cabelos pretos sempre penteados para trás,quando ele passava em minha casa,eu gostava de me sentar ao lado dele para ouvir o que dizia...apesar do controle intensivo de minha mãe, lembrando sempre a minha idade.
                             Tio Toninho aparecia em minha casa e suas visitas provocavam, por menor que fosse, uma comoção, principalmente quando bebia demais. Minha mãe quase sempre se zangava,mas acabava lhe arranjando roupas,obrigando-o a tomar um banho,um bom café mineiro  e forte, que ele bebia resmungando e ia direto para a cama,onde sempre dormia seguro, até passar  a bebedeira. Mas isto não me importava, porque a parte que eu mais gostava mesmo era o dia seguinte, quando ele acordava e, sentado à beira do fogão de lenha,me contava histórias engraçadas que às vezes eu nem entendia bem,mas sempre ficava feliz em ouvir...como a intrigante história de um certo presidente ditador a quem meu tio parecia venerar, mesmo sob a censura rigorosa de minha mãe...e ele sempre dizia,sorrindo:"Se acalme, Mariinha! si tengo las manos sucias,el viento las limpiará...a menina tem direitos!! tem ouvidos!!!"
Mais tarde vim a descobrir que a censura não vinha de minha mãe.Mas, sim, de gente muito mais poderosa, que tinha então o controle de tudo, até mesmo do que se pensava.Essa gente prendeu meu tio e foi assim que vi, pela primeira vez, uma cela de prisão...
                             Não me diziam porque ele estava ali, atrás daquelas grades.Não o vi mais em minha casa desde então e também não sei dizer ao certo quanto tempo ficou preso.Só me lembro de quando a campainha tocou de madrugada e meu pai saiu às pressas.Entre sussurros e muita correria, lá estava eu, mãos dadas com minha mãe,sob um céu maravilhosamente enluarado,enquanto minhas tias queimavam todos os pertences de meu tio Toninho. O clima era tenso, triste, sombriamente silencioso...Pilhas de livros queimavam, crepitando no fogo e na fumaça emergente, enquanto saíam do quarto dele, estranhos sons que lembravam lamentos, gemidos...e naquele instante eu não consegui mais ver a lua.Apenas a luz do fogo cortando a escuridão da noite.
                             Dias e dias se passaram,o entra e sai daquele quarto era uma bizarra rotina,o médico de voz rouca que me trouxe ao mundo saía com o olhar sem brilho, o rosto duro.Um dia ele saiu do quarto e minha mãe entrou com minhas tias, nem evitou que eu a seguisse,como vinha fazendo. A janela pequena do quarto abria para entrar o sol, meu tio sentado ao pé da cama,pálido,olhar perdido.Eu não sei se fantasiei,mas acho que tinha uma lágrima escorrendo naquele rosto sem luz..Ainda se sentia o odor do cigarro de palha,mas o armário de livros  só abrigava pequenos bonequinhos esquálidos feitos de caroço de manga, eu adorava vê-lo enquanto fazia aqueles bonecos!...chupar manga então, para mim, somavam dois prazeres...
                            Ao pedido dele, minha mãe levou-lhe água, enquanto uma sombra de sorriso parecia querer luzir naqueles lábios ressecados. Ele sorveu um gole, como se aquele simples gesto lhe roubasse a força que lhe restava, me fitou por um segundo e seus olhos azuis estranhamente pareciam serenos.Foi a última vez que o vi nesta vida.
                            Em outubro de 1965, meu tio Toninho morreu, em consequência de uma surra que levou na cadeia.Ele nunca se casou.Dizia que sua paixão era a Liberdade e tudo indica que foi esta mesma paixão o motivo que o levou ao cárcere.
Os livros queimados, soube mais tarde, eram biografias e idéias de personagens libertários, as histórias que minha mãe não o deixava me contar...eram livros "proibidos"...
Naquele ano eu não tive festa de aniversário.
                             Até hoje, o cheiro da manga me leva até ele. A palavara liberdade me lembra as histórias de tio Toninho. A música de Vítor Jara me traz  a luz dos olhos dele...
                             Talvez seja assim que as pessoas se tornam eternas...

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"Somos pájaros libres
Hermano,es tarde ya.
Volemos a la cumbre
Cúantos caminos recorre
el hombre sin descansar?
Y se muere en el camino
sin hallar la libertad
Cúantas veces en la noche
el soldado llorará?
Debe cumplir el mandato,
le enseñaron a matar!
Hasta cúando la pobreza
se tiene que soportar?
El hambre es un pozo oscuro
tan profundo como el mar...
Yo no soy aquel que soy
yo soy aquel que será.
SI TENGO LAS MANOS SUCIAS
EL VIENTO LAS LIMPARÁ!" (Victor Jara)

http://www.youtube.com/watch?v=ltAMZAGgATA&feature=player_embedded 

Tradução do título deste post:"Se tenho as mãos sujas, o vento as limpará!"...

                             

2 comentários:

  1. Olá Olívia!!!Que história cruel mas tão normal nos tempos da ditadura!!!!
    Você adorava ouvir as históris do seu tio Toninho mas ÊLES ....lá NÃO!!!!
    Ainda bem que nosso país hoje trilha outros caminhos que esperamos seja o da LIBERDADE.
    Gostei muito de conhecer através deste texto seu Tio que eu não havia conhecido.
    Espero que você guarde sempre o lado bom dele e inclua na sua vida a verdade!!!
    Um abraço e Que êle esteja em paz...
    Bjos.

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  2. Vc n faz ideia de como isso me tocou,pois vivi tb uma historia muito parecida com meu pai,nessa mesma época!!Tb vi meu pai ser levado covardemente num carro preto,algemado!Depois fui visitá-lo atras das grades!N me esqueço do desespero dele ao nos ver!Gritava:Abram,abram!!E balançava as grades como um animal enjaulado,mas...n abriram!Depois,foi transferido prá Ilha da Neves.Foi quando ouvi alguem comentando com minha irmã,sem se dar conta de minha presença:n espere mais pelo Geraldo,de lá ele n sai mais!E vários amigos dele foram mortos!Os livros queimados!Isso me lembro bem,os livros de meu pai!Mas,muito tempo depois,quando já n contava mais com apresença dele em nossas vidas,ele surge no quintal de nossa casa...Estava vivo!Mas fomos perseguidos por muitos anos!Era muito medo!
    Ah!Minha amiga,trágicas lembranças!!!

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